segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Uma vez, um tamanco azul

Usando um pouco da Clarice que mora em mim, tenho o dever de revelar tudo que sinto ou vejo. Nessa fase de "memórias", a qual me encontro, como bem falou um amigo meu esses dias, tento buscar lá no passado coisas que me marcaram ou me deixaram, no mínimo, alguma impressão. Coisas que parecem inacabdas, mas que ainda se mostram bem vivas em mim. A história do tamanco azul é uma dessas memórias que não quer calar! Numa noite de pouca lua e com uma previsão de tempo nada tranquilizadora, estávamos todos nós, pais e irmãos, a fazer o que era de costume, ir passear na pequena vila onde moravam os nosso familiares, parentes e amigos. Isso era quase uma obrigação. Naquele tempo, meados dos anos 70, morando em uma pequena popriedade rural, as dificuldades eram muitas. Não tínhamos luz elétrica, nem água encanada, nem carro ou qualquer outra coisa que se assemelhasse à modernidade. E as dificuldades não paravam por ai. Pois bem, numa dessas noites depois de visitar toda a parentada, voltando pra casa, com um tempo já meio chuvoso e com trovoadas, caminhávamos a passos largos. Eu, pequeno, tentava, ainda que sem sucesso, alcançar meus pais e meus irmãos mais velhos que, apressadamente, iam me guiando na escuridão. Minha irmã mais nova, se protegia nos braços do meu pai, que cada vez apressava o passo. A essa altura a chuva já descia violenta. Pingos grossos, vento, e um frio que fazia bater o queixo. Indiferentes àquilo tudo, um par de tamancos azul, cheirando a couro ainda, seguiam pendurados nos pés da minha irmã caçula. Eu, fitava-os misteriosamente e eles, em troca, querendo me dizer alguma coisa, exerciam um poder hipnotizador sobre mim. E eu não conseguia pensar em mais nada. Até o frio tinha ido embora. O medo dos trovões e da escuridão, tronaram-se distantes. A correria aumentava à medida que a chuva se tornava mais grossa, e nessa tentativa de chegar mais rápido em casa, foi que meu pai não vendo com clareza o que tinha à sua frente, tropeçou em alguma pedra e se espatifou no chão. Por sorte não se machucou e nem tampouco minha irmã que estava em seus braços. Por um instante a minha preocupação com ambos, trouxe-me de volta à realidade. Passado o susto, percebi que o par de tamancos estava desfeito. Agora, solitariamente, um só calçado prendia-se ainda que sem vontade, ao pé de minha irmã. Aquilo me causou uma tristeza estranha. Pensava em minha irmã, sem os belos tamancos, mas pensava também no outro pé do calçado, jogado à lama, sozinho. O que isso siginificava em mim? É verdade que pelo caminho vamos perdendo muitas coisas. Outras deixadas, propositadamente, para trás. E nunca sabemos qual delas nos sustenta e qual dos sentimentos nos revela. Os tamancos me apontavam as possíveis perdas, o caminho as vezes solitário, as separações, os rumos seguidos por cada um de nós. Que mesmo distantes, separados, sabe-se lá, em algum lugar ou dimensão. Me mostravam que, invariavelmente, alheios a nossas vontades, somos obrigados a encarar as ausências, a distância, o medo. Tudo isso revelado dentro dos sentimentos mais infantis. Exatamente como agora, pois o que fala em mim é a percepção daquele menino que ainda procura entender o significado de tantas outras coisas.

Um comentário:

Unknown disse...

Caramba, Zaca, esse texto me emocionou, enchi os olhos de lágrimas ao me transpor ao seu lugar, pois ambos vivemos uma infância meio parecida, ambos vívíamos entre o rural e o urbano com talvez as mesmas dificuldades, dificuldades estas que nos fizeram ocupar um lugar de destaque na vida,nos pouparam de cairmos no lado ruim, ingrato da vida e hj somos pessoas pertencentes a "elite" brasileira, neste país de milhões de analfabetos, fomos vencedores de um vestibular, de uma faculdade pública, fomos galgando nossos degraus e hj somos internautas, diários peregrinos deste mundo virtual ainda tão cheios de enigmas os quais buscamos decifrá-los cotidianamente.Bjs.