sexta-feira, 25 de março de 2011

Galinhas e outras lembranças

Durante aquele ano os dias se passavam lentamente, queixava-se Alfredo logo ao levantar da cama. O sol já se estendia sertão afora e podia-se ver o mundo até onde à vista alcançasse. Alfredo acordava com as primeiras horas do dia, fazia seus rituais matinais e depois seguia até o alpendre. Lá se sentava na sua velha cadeira de balanço, pegava um pedaço de rolo de fumo e começava a preparar o primeiro cigarro daquela manhã. Esse vício ainda vai acabar comigo, dizia pra si mesmo. Ali ficava em silêncio a observar a paisagem ao longe já meio trêmula, causada pelo andar da hora e do calor de dezembro, que lhe servia de pintura num horizonte avermelhado desde os primeiros raios do sol. Dentro de casa o cheiro forte de coisa velha e a poeira acumulada nos móveis de madeira antigos, com nomes e datas de aniversários rabiscados pela ponta dos dedos sobre cada tábua que compunha a mesa, pareciam servir como memória ou coisa assim, caso a parte humana viesse a falhar. O certo é que Alfredo já não lembrava direito nem se quer do rosto familiar dos mais próximos, e parecia acostumar-se ao equecimento. Talvez, a poeira nos móveis pudesse manter intacta a sua já frágil memória. Do lado de fora as galinhas comiam seu milho de anteontem ou sabe-se lá de quando, que tinha sido jogados com abundância. Sentado na sua velha cadeira de balanço, que rangia como dentes que se serram, Alfredo fitava o horizonte como se esperasse alguém. Os olhos fixos diziam isso. Na companhia de seu fiel escudeiro, Ciço, papagaio esperto e com memória ainda boa, Alfredo não se dava conta que muito tempo se passara. Entre uma tragada e outra no cigarro que queimava como se queima o tempo, Alfredo foi pego de súbito por uma voz não empoeirada, mas viva como o agora. O papagaio se agitou e as galinhas se assustaram de repente, pois não estavam acostumadas a visitas. A cadeira parou de ranger e Alfredo como se não quisesse acreditar e se esforçando para buscar na tábua empoeirada aquele rosto familiar, levantou-se e perguntou como seria possível. Antes mesmo de chegar até o alpendre e se aproximar por completo, uma voz chegava até os ouvidos de um Alfredo incrédulo, e como num susurro soprava palavras que fugiam pelo espaço. Um pequeno cochilo e o velho sonho de volta, acorda de súbito. Lágrimas caiam sem mistérios dos olhos de Alfredo. E ali, naquele instante, o tempo parou. A cadeira volta a balançar e a ranger. Alfredo pega mais um punhado de fumo e prepara mais um cigarro. Acende e traga tão forte como se quisesse ainda alcançar àquela memória. Levanta-se e vai até a mesa empoeirada e varre com a mão as lembranças, uma por uma, e volta ao alpendre, senta-se e fica a fitar de novo o horizonte como se esperasse alguém.