sábado, 14 de novembro de 2009

Pertencer

...Talvez fosse primavera, inverno quem sabe. Talvez fosse ainda verão com seus dias quentes ou chuvosos. Outono mais uma vez, com suas folhas amareladas indicando a passagem de uma estação à outra. Mas se não me falha a memória, lembro que tinha alegria e uma certa pureza de detalhes. A vida era como se não fosse, uma silenciosa sensação de pertencer. E ali não cabiam explicações demoradas. O que se queria revelar, estava lá, diante do olhos, mas de uma maneira que não se revelasse completamente. E isso não implica dizer que não se tinha a noção coisas, das imperfeições, dos medos, dos sonhos, dos desafios. Não. Naturalmente, era o estado de pertencer que nos colocava diante das possibilidades. Nesse estado de pertencer o mundo ia se apropriando de nós e nós dele. Era mais simples pertencer. Ficou complicado. O homem cabia no mundo. Na mudança de estações, perdemos, com o passar do tempo, essa sensação. Parece que esquecemos de pertencer. Hoje guardo como relíquias muitos desses estados de pertencer, numa memória que procura sobreviver bravamente aos ataques diários de um mundo moderno cheio de pretenções impiedosas. Conservo comigo as delicadas horas, refugiando-me nos dias ensolarados que acordavam cedo o galo, cantando madruga a fora, servindo de despertador para os mais preguiçosos, numa rotina ainda pouco agitada, que contava lá fora a história de cada um. Abro sorrisos ao lembrar das crianças que, ainda sonolentas, apressavam-se para não chegar atrasadas na escola, um ritmo marcado pelos passos desajeitados. Mergulho no silencio do final de tarde que se encerrava com um por do sol cheio de esperanças e de preces anônimas de tanta gente. E suspiros me tomam por inteiro ao recordar de um céu sempre carregado de estrelas, deixando a noite romântica, misteriosa, carregadas de segredos. Recordo-me das pracinhas dos namorados jurando amor eterno entre abraços e beijos demorados, fotografados pelo próprio tempo na luta contra a impiedosa efemeridade do gesto. E sinto o passado que se faz presente, alimentando nossas lembranças e que nos faz pertencer, simplesmente, vivos para o futuro.